sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Poesia Sempre - Hilda Hilst

I

(Andante tranquilo)

Ainda é cedo, Ricardo, para o tempo que dizes
Da velhice. Não que sejas menino. Não o és.
Mas na noite flutuas pela casa tão dissipado em meiguice
Que a mulher vê no homem o menino que é.
Sei do teu riso extremo insinuando.
A ferocidade da tua meninice. E pensas porque te amo
Que esqueci a arena ensolarada de outros dias
O rio coalhado de anzóis, a matança das aves
No sol do meio-dia.
Vê, Ricardo, se foi me dado cantar tua brandura,
É porque aquele que tu foste um dia, sendo feroz
Amou. Talvez por isso é que eu te amo agora.

II

(Poco piu animato)

Que te alegres de mim, Ricardo. Que a clareza do verso
Não te saiba à fatuidade e tola singeleza. Posso, para te celebrar;
Ser tecelã de um dia. E se o verso nasceu enquanto a mão tecia
É porque a cadência do tear trouxe de volta ao peito
Meu mundo amável de reminiscência.

Tive uma rua clara e a vontade gentil de descobrir o mar.
E se o ombro apenas começava um movimento rítmico de asa
Eu era navegante e navegava. Que te alegres de mim.
Entardeci possuída de infância;

III

Sendo tu amor; irmão, comigo te pareces.
Em ti me dessendento e contigo me aplaco.
Esta larga vertente se parece à água
Do teu amor em mim onde um dia feneço
Porque também fenece a flor apaziguada
Essa que não nasceu para ter alimento
Antes para morrer do amor desmemoriada.
E se tudo me dás, num sopro anoiteço.
Eu sempre serei terra. E tomando a semente
Tomo pra mim uma tarefa inteira:
A de guardar um tempo, o tempo que recebe
E livrá-lo depois de um jogo permanente.
Outros te guardarão. Não eu só pretendo
Libertar na alegria o coração e a mente.